O desabafo da terça-feira

Todo mundo tem um dia da semana que não gosta, que teme, que se “apreguiça”.

Para muitos, o tal desgostoso é a segunda-feira. Tem até explicação científica. Dizem os estudiosos que é o dia do descontrole dos relógios analógicos, digitais e biológicos. Isso porque o fim de semana ganha um livre arbítrio para fazer o que bem se entende, até chegar a tal da segunda para alinhar compulsoriamente os tique-taques.

Esse também é o dia da promessa, descumprida. Vou começar a academia, parar de fumar, iniciar um curso. Mais um motivo.

A Ciência vai mais longe. Numa pesquisa norte-americana descobriu-se que as mulheres se sentem menos atraentes nesse primeiro dia útil da semana. E como contra fatos não há argumentos, parece que a turma exagera um pouco nas doses, nos docinhos, toucinhos e outros inhos nos dois dias de bel prazer.

Já a sexta parece quase que unanimidade de dia perfeito para ser feliz. Ganhou até conjugação de verbo. Sextou.

Confesso que eu procuro me ajustar com os dias. Só não me acostumo mesmo é com a tal da terça-feira. É cisma? Não, não é. Ela me persegue. Parece até que aquele homenzinho pequeno de asas curtas e orelhas grandes e pontudas sempre se achega bem pertinho da minha orelha para zumbir e gargalhar não sei do quê, destilando algo que eu também não sei o que é. Só sei que é terça-feira.

É o dia propício para chegar a fatura do cartão, o sol se ir, o gatinho fugir, o dente doer e o gás acabar. O bom da história? Uma hora ela vai embora e lá se vem a quarta-feira, não importa se de cinzas, azul ou cor de  rosa. É um novo dia.

Alto lá. Pasmei-me agora. São cinquenta e três dias no ano desperdiçados ralo abaixo? Calma, menina, arregasse essas mangas, arranque esse montrengo verde orelhudo vez por todas desse ombro, corra até onde o sol estiver, faça picadinho das faturas, segure o gato, tome um analgésico e peça um fast food qualquer.

Cada dia deve ser um verbo para conjugar com as mesmas regras do sextar. Então, bora a partir de hoje terçar.

Todos queriam passar em frente só para ver a senhorinha

A senhorinha beijoqueira dos cabelos de algodão

Todos os dias, Gilcelânea fazia questão de caminhar em sua rua só pra ganhar um beijo, ainda que de longe, da simpática senhorinha dos cabelos de algodão.

Ao contrário de todas as casas, a sua, de número 42, era a única que floria, ainda que não fosse tempo de florir.

Mal cabiam as flores, que precisavam ser levadas dia a dia por um carrinho de mão, que de tão belo, parecia mais uma decoração do que objeto de construção.

Era batata, bastava dar alguns passinhos e lá estava dona Hermenegilda de plantão, à espera de mais um alvo. Seu beijo era certeiro, atingia bem no fundo da alma de quem por lá passava.

Alguns dias se passaram. Aquele jardim, que mais parecia um arco-íris de tão colorento deu lugar a um marrom seco e espinhento.

Não havia mais rosas, não havia mais beijos. A velhinha se foi, sem ao menos se despedir. A caminhada de Gilcelânea agora andava a passos largos, duros e sem graça.

(Imagem criada por meio de IA do ChatGPT / Conto inspirado em fatos reais, escrito pela jornalista e escritora Claudia Rato, autora do livro de contos Pra mim você morreu. Hé uma versão em vídeo desse conto, narrada pela autora, em sua conta no TikTok)

A chaleira nova

A chaleira nova

Jislamilda estava decidida a comprar uma chaleira nova. Aquela, que morava em uma das bocas de seu fogão, perdera o brilho, a beleza e nem mais acordava a vizinhança com seu som agudo e alegre toda manhã.

Comprou. E logo foi a esnobar sua antiga velha companheira das manhãs mostrando sua substituta, linda e brilhosa.

Previstênio, o marido, acordou e também ficou encantando com a tal chaleira nova. Pegou-a com a delicadeza de quem segura uma pedra preciosa e a colocou num canto escondido, dentro do armário.

A esposa não entendeu e o questionou.

_Marido, por que você fez isso?

E ele respondeu, porque uma belezura dessa não pode ser usada assim, sem motivo especial. Em dias de visita, ela aparece, e quando todos saírem, ela volta ao seu lugar.

_Façamos diferente, então. Que a cada dia nesta casa seja uma data especial e, assim, teremos as melhores razões para usar todas as chaleiras novas deste mundo.

O esposo entendeu o recado e levou o velho objeto para fora de casa. Deste dia em diante, o café ficou bem mais gostoso.

(Crônica da jornalista Claudia Rato, autora do livro Pra mim você morreu. Imagem cedida via Freepik, desenvolvida a partir de recursos da Inteligência Artificial. Você pode ver o vídeo narrado deste texto na conta do TikTok – veja outros textos, contos e crônicas da autora em seu blog e siga suas contas nas principais redes sociais. E se você tiver uma história da sua vida e quer transformá-la em um conto ou até mesmo em um livro, deixe mensagem por meio das mídias Instagram e Tik Tok que entraremos em contato. Para adquirir o livro, é possível solicitar também nessas mídias digitais)

Acredite no seu poder Cinderela versão 2024

Resolvi repetir algumas coisas neste ano, a começar por livros já lidos e filmes vistos. Isso é bom, ao menos a mim, pessoa desprovida de boa memória.

“A metamorfose”, de Franz Kafka, foi a obra que escolhi reler. Logo no primeiro parágrafo, o escritor tcheco descreve, com suas minuciosas e sábias palavras, a anatomia de um inseto nojento. Nessa releitura vi quão rica pode ser uma boa metáfora. O livro traz uma boa reflexão sobre as relações. Em um único dia lá se foi metade das páginas.

Já a versão moderna – e necessária – de Cinderela foi minha opção de releitura audiovisual. Nessa nova revisão, o filme me fez relembrar uma frase recente de um amigo que se intitula “conservador” e que foi assistir produção similar antes de levar suas filhas ao cinema. Era a Barbie, que não passou no teste do pai preocupado. “Muito feminista”, concluiu. Uma pena.

Ainda sobre o remake da futura princesa dos sapatos prateados, lembrei-me da ocasião na qual outra amiga instigava a prima quarentona a procurar por um homem endinheirado. “Não preciso disso, eu sei me sustentar muito bem”. O tom não foi tão simpático quanto o da personagem que abdicaria sua vida num palácio caso não tivesse sua própria independência e reconhecimento do seu talento de costureira, mas soou perfeitamente igual nos ideais. Palmas pras duas, quando eu crescer quero ser assim. Sim, às vezes bate a vontade de jogar o despertador bem longe e sonhar com um príncipe encantado e nenhum boleto atrasado. Mas não perdi meu chinelo em nenhuma mansão perto da meia-noite, então resta inspirar-me e correr atrás do meu valor.

Outra coisa que pretendo rever esse ano é um curso de crônicas de uma famosa e respeitada cronista que fiz no ano que se foi. Na ocasião, assisti todas as aulas em um único dia, na ânsia de acabar logo. Tenho a impressão de que dessa vez será mais produtivo e que valerá à pena essa repetição também.

Só é uma pena que não dá para reviver uma festa inesquecível, o nascimento de um filho, o baile da formatura, um dia memorável em família. A vida não tem replay, essa não dá para rebobinar. Repetir de ano, só na escola, e isso ninguém quer.  Sendo assim, reavivamos os bons livros e filmes, lembremos dos bons fatos já vividos mas façamos acontecer hoje novos momentos nessa vida, que é única. A hora é agora. Acredite no seu poder Cinderela versão 2024. Feliz Ano Novo.

(Crônica de Claudia Rato, jornalista e escritora, autora do livro Pra mim você morreu)

Lisbela e o marido ogro

Lisbela e o marido ogro

Numa manhã em que o sertão despertava em brasa ardente, Lisbela, mulher das muitas luas já vividas, se viu enredada num sonho que mais parecia uma ciranda de memórias, resgatando afetos de um cabra arretado que se escafedeu no meio da roça. Ainda de pijama, com os olhos inchados de tanto dormir, a sonhadora se assentou à beira da cama e continuou a sonhar, dessa vez acordada.

Aquela aurora, em que a terra exalava calor e fervor, se desdobrou numa tarde de domingo escaldante e animada, repleta de lembranças que bailavam ao som do crepitar das labaredas que afagavam o solo.

Não fosse o marido, sujeito firme e rude, ter sacolejado a esposa para lhe fazer um café puro e amargo, enquanto o sol derramava sua luz sobre o rincão sertanejo, certamente ela dormiria novamente só para saber que fim daria aquele sonho, que parecia ser demasiado de bom.

Sem alternativas, a mulher fez-lhe um pedido singelo:

_ Ó, meu amado, teria a bondade de fazer um afago na alma dessa criatura que vos fala só para mostrar seu chamego arretado por mim?

Com expressão de quem estava mais acostumado com a secura do sertão do que com requintes amorosos, o moço grunhiu em resposta, aguardando a solicitação.

— Poderia encontrar, colher e me trazer uma flor azul com espinhos vermelhos?

O marido a encarou, perplexo, como se o pedido fosse mais absurdo que um cangaceiro dançando xaxado na praça.

— Uma flor azul com espinhos vermelhos? Isso é coisa de conto de fadas, mulher! Não tem no sertão quem plante tal encanto. E você, com esse xale velho, está mais pra um cacto espinhento que pra Maria Bonita. Parece até que comeu rapadura com pimenta, diacho.

Imperturbável em seu desejo e incomodada com a comparação, a mulher ordenou:

— Se vira, valentão. Volte só quando encontrar.

O rapaz partiu, em uma jornada que mais parecia uma travessia pelo deserto. Enquanto cruzava os rincões secos em busca da tal flor exótica, Lisbela contemplava o vasto horizonte, onde o calor tremulava como ondas de um mar de saudades.

— Que tempo foi esse que passou tão depressa e que agora parece não passar nunca mais? — questionava a moça, na esperança de encontrar respostas para suas escolhas.

A tarde se despedia, saudando o anoitecer, quando surgiu um sujeito de trajes singulares. Era um homem de beleza que até assustava, esbelto e elegante, trazendo consigo um buquê de flores azuis entremeadas por espinhos rubros.

Pena que Lisbela acordou do sonho com outro chacoalhão do comparsa de movimentos bruscos, que não encontrou a tal rosa exótica, mas fez questão de dar a ela um pequeno xique-xique como forma de seu afeto.

Ela sorriu para o marido, levantou-se e foi botar o feijão no fogo.

Este texto é uma adaptação do conto original A mulher sonhadora e o marido ogro, de Claudia Rato, reescrito pela Inteligência Artificial a pedido da autora para a versão do escritor Ariano Suassuna. A proposta era ver como ficaria essa escrita com o uso dessa tecnologia no tempo e ao estilo do autor supracitado. Vale ressaltar que o texto da plataforma de IA passou por inúmeros ajustes a pedido da autora para explorar e chegar o mais próximo possível da escrita de Suassuna. A imagem também foi extraída de I.A. O mesmo conto também passou por adaptações na linguagem escrita dos autores Franz Kafka, sob o título Gregorlínea e a flor rara; Eça de Queiroz, em O despertar de Euseclânea e Machado de Assis, em Devaneios matrimoniais: Euseclânea, o ogro e a quimérica flor azul. Também cabe destacar que o conto adaptado de Suassuna foi o que mais se aproximou da realidade linguística do escritor, sendo que os primeiros não sofreram tanta alteração da autora do conto original após passar pela plataforma.