Mulher cria seu próprio destino e atribui seu fracasso amoroso à cigana

A cigana te enganou

Crisântema nunca se conformava com o fim da relação. Apaixonada por Helicônio, recorria sempre a todos os santos, mandingas e preces para ter o amado de volta.

Ela tinha certeza de que ele era o homem da sua vida, a cigana tinha falado. Sim, ainda adolescente, foi a uma cartomante. A mulher dizia que assim que a moça completasse dezoito anos iria se deparar com alguém que mudaria completamente a sua vida.

Não via a hora de sair dos dezessete para saber quem seria essa pessoa tão especial.

No dia de seu aniversário, acordou cedinho, se arrumou, vestiu a melhor roupa, passou seu perfume preferido, adornou-se de joias, bijuterias e outros acessórios, encheu o rosto de pó, pintou os lábios de vermelho e saiu para fazer jus às palavras proferidas pela profissional do futuro.

Deparou-se numa esquina com um rapaz de bicicleta, entregador de flores. Os dois se esbarraram, ele tropeçou, e um buquê de camélias, suas flores preferidas e que o pobre moço carregava, caiu na mãos da moça.

_ Sim, é ele – sussurrou para si, abrindo um largo sorriso ao rapaz.

Ela nem percebeu, mas ele não gostou nadinha de ter perdido a entrega, que lhe renderia uma boa gorjeta. Mas diante da alegria da menina, fingiu elegância, deixou com ela o mimo e seguiu na labuta. Ainda tinha um cacto e meia dúzia de bromélias para entregar.

Empenhada na profecia da cartomante, Cris descobriu onde o moço morava e tratou de marcar um encontro. Ele aceitou, sem muita animação.

Não demorou muito para assinarem o velho contrato de fidelidade da obsoleta frase “até que a morte os separe”.

Ninguém morreu, glória a Deus, os anos se passaram e o casal vivia se desentendendo. Qualquer sinal de ameaça de perder aquele que acreditava ser sua alma gêmea era motivo dela correr atrás de forças maiores.

Num desses desentendimentos, o ex-entregador de flores saiu para comprar cigarro…

Desesperada com o sumiço do homem, prometeu a um santo qualquer que se conseguisse o amado de volta distribuiria mil santinhos dele por toda a cidade. Mal terminou a promessa e o cidadão bateu à sua porta pedindo clemência. Cris ficou tão emocionada que até se esqueceu de cumprir o combinado com o protetor religioso.

Com o tempo, a mulher precisou buscar outros recursos, tudo para garantir a palavra da cigana.

Aos domingos, ia à missa pedir a bênção do padre. Às terças, rezava uns terços na capelinha do bairro, às quintas-feiras, recebia uns passes para garantir que nenhum encosto debruçasse no ombro do casal, e quando a situação apertava, apelava para uma mandinguinha básica, uma pimentinha com o nome dele e alguma suposta oponente, uma cueca lavada no sal grosso juntinho do seu sutiã e por aí afora.

Certo dia, após uma forte tempestade de verão, Crisântema seguia num estacionamento de supermercado em direção ao seu carro quando apareceu uma mulher de feição estranha e sisuda se aproximando dela.

_ Minha filha, tenho que te falar uma coisa. É sobre ele. Dê-me sua mão. Você só vai ter paz quando…

_ Eu, hein, não quero saber nada disso, não. Sai pra lá _ disse, incomodada, a moça e saiu de perto da tal vidente desconhecida, ainda que curiosa.

Uma energia ruim pairava sempre diante do casal. Aquele rapaz da bicicleta não parecia ser o mesmo citado na tal consulta com a cigana anos atrás, mas a moça persistia, estava escrito. As cartas não mentem, pensava ela.

Helicônio sempre foi um ser distante, frio, calado, chato e mal-humorado, mas Cris insistia na crença da metade da laranja dos dezoito anos.

Em outra tarde de chuva torrencial, a mesma mulher do estacionamento ressurge, e dessa vez Cris resolveu falar com ela, temente do que poderia ouvir.

_ O santinho tá até agora esperando. Cadê a promessa paga?

_ Meu Deus, é verdade. Tá explicado. A culpa é toda minha _ disse a moça, que saiu correndo, sem esperar mais profecias e tratou de providenciar o tal milheiro do santo vingativo, distribuir por todo o bairro e sentir-se aliviada. Promessa paga.

Desde então, Crisântema sentiu-se aliviada, com uma leveza na alma que não sentia há muitos anos. Atribuiu tudo ao santo.

Noutro dia, se deparou com a tal cigana da sua juventude e falou com ela, em alto, grave e bom tom.

_ Você disse que eu encontraria alguém que mudaria a minha vida. Eu encontrei, mas você me enganou, ele não é o que eu pensava.

_ Ah, menina, você não esperou eu molhar o bico e saiu correndo, lembra? Eu tentei te alertar várias vezes, mas você sempre fugiu. Sim, a vidente do mercado também era eu. Agora você aprendeu que com santo não se brinca. Demorou, mas aprendeu. Pagou a promessa, ótimo, antes tarde, ganhou a paz de volta. Eu disse que essa pessoa mudaria a sua vida, e mudou, não mudou? O destino da gente é a gente que escolhe, só tirei as cartas, quem jogou até o fim não fui eu. Aliás, aquele dia você saiu tão depressa que esqueceu de me pagar. Já calculei os juros de lá pra cá. Vou te passar meu pix.

(Texto: Claudia Rato, autora do livro de contos Pra mim você morreu/ Imagem: Freepik)