“Quanto você quer ser feliz”? – Conselho de octogenária muda rumo de uma jovem mulher

Rosa, enfermeira, casada, 27 anos. Valfredo, 32, farmacêutico, casado com Rosa. Eles não têm filhos, só um cachorro, o Wlad, que já era de Val, antes de se casarem.

A jornada de trabalho de Rosa sempre foi dura. Quando não estava de plantão no único hospital público da cidade que morava, cuidava de uma senhorinha rica, culta e solitária.

Na casa de dona Gertrudes, pegar numa injeção ou caixa de remédios era o que Rosa raramente fazia. Lá o bate-papo era a receita pra qualquer problema! Isso valia para as duas, porque dona Gê, com seus oitenta e poucos, gostava muito de uma prosa e tinha assunto pra tudo.

À frente do seu tempo, sempre fazia questão de se lembrar quando fugiu de casa, às vésperas de um casamento arranjado com um homem 30 anos mais velho.

_Furtei algumas agulhas, linhas, uma tesoura bem afiada, umas boas ‘fazendas’ de minha terceira irmã (de uma série de dez, cinco mulheres e cinco homens) e, com alguns “réis” que eu havia ganhado do meu padrinho, consegui comprar uma Singer e costurar pra fora”, meus pais quase enlouqueceram _ disse, aos risos.

E assim viveu Gertrudes seus anos de exílio de uma das famílias mais tradicionais de sua época.

Foi a primeira e única dos Almeida Prado a fazer faculdade. Seu sonho sempre foi ser estilista. E assim foi. Estudou moda e foi para a França aprimorar seu talento. Lá conheceu um parisiense lindo, charmoso e educado com quem se apaixonou, paixão essa que logo deu lugar à desilusão. “Você não precisa estudar. Fica comigo, que te darei tudo o que quiser”, disse o rapaz.

_Ele não era homem pra senhora _ comentou Rosa.

_Não! Eu é que não era mulher pra ele! _ respondeu.

A senhorinha dos cabelos esbranquiçados viveu outros dois grandes amores em terra distante. Um deles, ao lado de uma mulher linda e sensível que não resistiu à pressão da família e tirou a própria vida, jogando-se ao mar. Até hoje Dona Gê lê todos os dias a última carta escrita a ela pela amada. Outra paixão vivida foi com um homem casado. Logo que soube que ele vivia uma vida dupla, desistiu desse amor.

Quando regressou ao Brasil, já estilista conceituada, Gê foi chamada para trabalhar em um ateliê de alta-costura. Meses depois, lá estava ela, assinando as principais grifes da moda feminina, com seu estilo revolucionário e sensual de vestir a mulher brasileira, isso após passar por várias censuras, claro.

Algum tempo depois, Gertrudes conheceu Anastácio, um homem magro, alto, negro, pobre e treze anos mais moço. Ele era o motorista de uma fábrica de tecidos. Apaixonaram-se e se casaram. Viveram felizes por várias décadas, até o último suspiro do marido.

Com uma memória exemplar, essas e outras histórias fascinavam Rosa, que até esquecia da hora de ir embora, mas esse esquecimento lhe custava caro, porque a moça sempre tinha muito o que fazer em casa.

Ao contrário de Rosa, Valfredo não tinha um compromisso de trabalho. Desempregado, vivendo às custas do suor da esposa, costumava sair às tardes para dar uma caminhada. Ao voltar, tomava seu banho e sempre estudava à noite para as aulas de pós -graduação que fazia aos sábados. Também fazia inglês às terças e quintas-feiras, custeado pela mulher. Ambicioso, queria subir na vida.

Rosa chegava, colocava sua bolsa na mesinha de canto da sala, lavava as mãos e já começava o preparo do jantar. Sonhava ser psicóloga, mas não tinha tempo, tampouco dinheiro para isso. Transferiu todo o seu sonho para o futuro do amado.

Ela gostava de tudo certinho em casa e sempre dava um jeito pra uma arrumadinha extra.

Perto de seu trabalho havia uma escola de dança – Rosa adorava dançar. Várias vezes foi lá para saber informações. Empolgada, contava a novidade para o esposo, mas Valfredo logo a desanimava, lembrando dos custos.

Embora o lar do casal estivesse frequentemente limpo, o rapaz sempre conseguia encontrar um defeitinho, coisas bobas, desnecessárias de percepção. Rosa fazia, e bem fazia, o que dava, mas o tempo era escasso.

Mas Val queria mais: uma diarista, mas segundo Rosa, além de inviável, seria algo caro de se pagar.

_Se não tem pra mim, que já faço tudo aqui e muito bem feito, como vai ter pra outra? _  questionava ao marido o fato de não ter dinheiro para suas merecidas aulas de dança, nem para as suas unhas, cabelo… _ mas pagar quatro vezes mais esse valor para uma diarista, aí tem!_ reclamava a moça.

_Dá pra entender isso, dona Gê? Eu ralo no trabalho, minha casa está sempre um brilho, comidinha na mesa, não me sobra nem pra um dia no salão do meu dinheiro e ele quer bancar uma de patrão? Se é assim, paga pra mim! Mesmo indignada, aceitei. A mulher foi lá e fez um servicinho de merda. Não contei nem duas horas de trabalho. Ela pegou seu dinheirinho e foi-se embora. Quando o descarado chegou, ele disse: Agora, sim, isso que é arrumação. É mole, dona Gê? _  perguntou.

Eis que Gertrudes, mais uma vez, surpreendeu Rosa, não com suas histórias de amor, mas com uma proposta inusitada.

_ Há quanto tempo você não arruma esse cabelo? A grana tá curta, mas pra faxina não está? Essa limpeza é a mesma que você já faz há anos, mas que para o seu marido está sempre ruim? E o seu tempo, é curto porque você precisa vir aqui pra ouvir um monte de baboseira minha? Ora, pois. Agora sou eu quem vou pra sua casa! Pois bem, minha querida: a “diarista” que o seu esposo já tem e que não é valorizada, ele vai ter, só que a partir de agora vai pagar por isso! E não vai ser baratinho não, porque você não vai mais contratar uma qualquer…

_ Como assim, dona Gê?

_Vamos lá, só vou precisar de um bom banquinho, um chazinho e um ventilador para refrescar minha memória. Daí, enquanto você me escuta, arruma sua casa. Assim, continuará trabalhando para mim e para o seu “novo patrão”. Seu ilustríssimo vai chegar  e encontrará tudo arrumadinho, sem sequer saber que quem vai receber pelo trabalho será você – detalhou a sábia octogenária.

_ A senhora faria isso por mim? _ perguntou, empolgada.

_ E você acha que eu vou perder essa? Claro que não! Mas você tem que me prometer que vai fazer sua matrícula na dança e ficar linda.

_ Mais que prometido! _ disse a moça, com um leve sorriso.

Primeiro dia de faxina, lá estavam as duas no maior bate papo na casa de Rosa. À tardinha, quando Val chegou, disse: “agora sim a casa está limpinha. Olha esse brilho, esse chão, essa mulher é mesmo ótima. Vale a pena pagar pra ela!”.

_ Com certeza, nada mais justo! _ respondeu Rosa.

Alguns dias depois, sem plantão, nem trabalho em casa, Rosa foi fazer as luzes que tanto queria com a grana que juntou de duas semanas da faxina. Ficou linda! Amarrou o cabelo pra evitar questionamentos do marido, mas nem se preocupou tanto, porque ele sequer notou, não teve muito tempo pra ver esse tipo de observação, até porque estava preocupado se Rosa iria tirar a gordura na parede ao lado do fogão antes da próxima faxina paga.

E assim foram mais alguns dias de limpeza, visita de dona Gê em sua casa e muito assunto interessante e inspirador daquela simpática senhorinha, até um dia a velhota perguntar para Rosa o quão feliz estava naquela casa.

Eis que Rosa silenciou. Seus olhos voltaram-se para um tempo distante, onde sentia a brisa do vento bater em seu corpo, sem sentir frio na alma.

Respondeu com uma frase: _Quanto nada!

_ Então, por que raios estás aqui? Quanto queres ser feliz?

_ Quanto tudo!!!

Dona Gê levantou-se da cadeira e andou por toda a casa. Deslizou seus dedos macios e enrugados na estante da sala, sobre a geladeira, agachou feito moça atleta no chão e mostrou seu indicador intactamente limpo.

_ Felicidade não se mede assim! A vida é feita de momentos, bons e ruins, alegrias e tristezas, mas pra encará-la é preciso cumplicidade, só assim se é feliz! – disse à moça.

Rosa enxugou disfarçadamente algumas lágrimas do rosto, tirou seu avental, jogou um pano que estava na mão, pegou uma caneta, um pedaço de papel amassado e escreveu:

Senhor Valfredo, meu patrão, fui ser feliz, mas não se preocupe, diarista você encontra em qualquer lugar. Assinado: Rosa

Fez suas malas, despediu-se de Wlad e, sem olhar pra trás, foi atrás dessa tal felicidade!

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