Todos queriam passar em frente só para ver a senhorinha

A senhorinha beijoqueira dos cabelos de algodão

Todos os dias, Gilcelânea fazia questão de caminhar em sua rua só pra ganhar um beijo, ainda que de longe, da simpática senhorinha dos cabelos de algodão.

Ao contrário de todas as casas, a sua, de número 42, era a única que floria, ainda que não fosse tempo de florir.

Mal cabiam as flores, que precisavam ser levadas dia a dia por um carrinho de mão, que de tão belo, parecia mais uma decoração do que objeto de construção.

Era batata, bastava dar alguns passinhos e lá estava dona Hermenegilda de plantão, à espera de mais um alvo. Seu beijo era certeiro, atingia bem no fundo da alma de quem por lá passava.

Alguns dias se passaram. Aquele jardim, que mais parecia um arco-íris de tão colorento deu lugar a um marrom seco e espinhento.

Não havia mais rosas, não havia mais beijos. A velhinha se foi, sem ao menos se despedir. A caminhada de Gilcelânea agora andava a passos largos, duros e sem graça.

(Imagem criada por meio de IA do ChatGPT / Conto inspirado em fatos reais, escrito pela jornalista e escritora Claudia Rato, autora do livro de contos Pra mim você morreu. Hé uma versão em vídeo desse conto, narrada pela autora, em sua conta no TikTok)

Moça responde rapaz chato com palavras diferentes

Ser desumilde: desaplaudindo o rapaz

Escuta aqui, ô Raul, a partir de hoje estou “desaplaudindo” você, você é um ser “desumilde”, não sabe “coisar” nada, não tem coragem de passar uma “bassoura” no chão, só sabe reclamar da minha “berruga” na testa e não vê que eu sou uma mulher “trabalhadeira”. E não adianta me chamar de “coronela”, eu sou é uma “giganta” perto de você, quando eu quero, sou doce como “méis”. E nem venha ”assoviar” aqui no meu ouvido me chamando de benzinho porque igual a você tem outros “Rauis” correndo atrás de mim. Tô fora, meu bem, quero paz no coração. E quer saber, eu sou uma mulher “chiquíssima” e você não me merece. E digo mais, “vai te catar”.

Ela está certa?

Certíssima porque todas as palavras estão ditas da forma correta, vamos ver?

Desaplaudindo é o contrário de aplaudir.

Desumilde é o antônimo de humilde.

Coisar, considerada uma palavra para suprir um verbo que, por lapso ou ignorância, a pessoa esqueceu o nome

Bassoura existe oficialmente, sendo mais falada de modo informal

Berruga. Embora soe estranho, é o mesmo que verruga, sendo uma palavra abrasileirada

Trabalhadeira é o feminino de trabalhador

Coronela é o feminino de coronel

Méis, plural de mel

Chiquíssima é uma mulher muito chique

Vai te catar é o mesmo que não amole

Então, cara moça, você está corretinha e o Raul vai ter que engolir.

(Texto: Claudia Rato, autora do livro Pra mim você morreu/ Imagem: Freepik)

Amor de carrapato

Ah, o amor! Esse sentimento tão sublime, capaz de nos fazer flutuar nas nuvens e suspirar como adolescentes apaixonados. Opa, desce desse pedestal fantasioso e volta pro mundo real, que ainda dá tempo.

Calma, não estou falando que não se deva amar alguém e ser feliz, mas sempre é bom pensar nas intempéries amorosas, se precaver com alguma espécie de vacina, tomar uma canja de galinha, que não faz mal a ninguém.

E por falar na tal madame penosa, que vive rodeada de carrapatos que não a deixam em paz, uma relação também pode nos afetar dessa forma.  Sim, esse sentimento nobre, que fervilha o estômago de borboletas coloridas, pode caminhar na contramão e causar um caos geral se não administrado certinho.

Essa metáfora pitoresca ganha vida quando o seu bem se torna uma espécie de parasita afetivo, pronto para sugar todo o seu tempo, atenção e energia. Epa, não se vanglorie aqui se achando o exemplo de cidadão do bem, até porque esse tal elemento sugador pode ser você, já parou pra pensar nisso?

Tudo começa de maneira inocente. Os pombos se conhecem e o céu cinzento vira cor-de-rosa. Ah, que lindo.

Vamos para a página dois desse planeta encantado, pulando para o cenário não tão perfeito assim. Sem perceber, a pessoa passa a ser sugada ou a sugar, feito aspirador. Sim, o carrapicho começa a mostrar suas garras. Passa mensagens a cada cinco minutos, pede a localização pelo celular, sinal de fumaça ou qualquer forma de saber onde o ser está, fuça as redes sociais, pergunta quem é fulanes, sicranes e beltranes. Enche o saco. Sei que também tem o caso de a outra pessoa nunca atender, viver com o telefone mudo etc., o que também desperta qualquer mente contaminada. Custa atender? Verdade, não custa, mas o foco aqui é no parasita.

E agora, Maria, e agora, José, o que fazer? Se fosse um problema ligado à espécie científica, a orientação seria arrancá-la com cuidado com uma pinça para não ficar nenhum resquício na pele, mas literalmente falando, essa praga não sai tão fácil assim. O negócio é tentar uma reza braba, um papo reto e, se não rolar, desinfetar a alma e pôr pra secar no varal.

Mas como cada caso é único, e o amor pode nos surpreender de formas inesperadas, quem sabe um pouco de diálogo, compreensão e carinho podem surgir como um repelente eficaz? E se mesmo após todas as tentativas o bichinho persistir, aí não haverá amor que resista. Pula fora que o “praguento” não vai o “desagrudar” tão fácil.

(Imagem: Freepik)

Alternativas da meia idade: a melhor escolha é você

Às vezes, só o que a gente precisa é de boas companhias

Lembrei hoje da crônica “Nascer velho, morrer jovem” do saudoso humorista Chico Anysio propõe reinventar a vida. Morreu de quê? De infância. Ah, então viveu bastante – assim diriam as pessoas, nesse universo utópico. Não sei ao certo, mas seriam octogenários, nonagenários, quiçá centenários às avessas.

Mas como de tudo se aproveita algo e vindo de alguém de tão nobre sabedoria, talvez pudéssemos adaptar um pouco essa quimera apenas nos números, o que me fez lembrar de um texto riquíssimo de um folhetim em que a atriz Andrea Beltrão, na figura de sua personagem cinquentenária, decidiu descer um ano em sua via a cada aniversário. Qual o problema? 49, no ano seguinte, 48, e assim seguia, plena. Deixa a moça viver em paz, oras. Ah, se fossem só os números!

Sim, eles não vêm sozinhos. Chega uma fase da vida que a gente não sabe se faz uma plástica, se pega a grana para viajar, se se separa, se inventa uma pequena reforma em casa ou se gasta tudo em vinho.

Mas aí vem a realidade e a gente vê que o tal procedimento estético mal daria para um famigerado botox feito numa única região da face evidenciando as linhas de expressão vizinhas; que a viagem certamente não passaria de um fim de semana num resort próximo ou cinco dias num hotel meia boca com direito a meia pensão; que aquela churrasqueira no quintal poderia ser uma construção sem fim e que os vinhos poderiam resultar numa ressaca profunda, dada a procedência, de rótulo duvidoso.

A alternativa que sobrou pode fazer algum sentido, se tudo correr bem. Dizem que também é um remédio para atenuar pequenos sinais e cicatrizar algumas marcas da vida. E se se organizar direitinho, dá para celebrar com uma boa garrafa, de ótima safra, com companhias agradáveis e que a gente nem precisa ir tão longe.

A boa viagem pode estar dentro de si. Reinvente a vida. O desafio é seu.

(Texto: Claudia Rato, autora do livro Pra mim você morreu / Imagem Freepik)

Enquanto meu celular desligou…

Desconectar para se conectar com o que realmente importa

Acabou a bateria do meu celular bem na hora em que eu ia tomar um solzinho na frente de casa.

E agora, o que o que eu faço? Restou-me um livro, fazer o quê? Lá fui eu, pegar alguma coisa na estante e voltar pro sol.

O segurança passou de moto e me cumprimentou. A vizinha me trouxe um pedaço de bolo de fubá com recheio de goiaba, o companheiro se achegou, o filho também se adentrou pro lado de fora, uma senhorinha de pouco mais de oitenta que passava na rua e não sei quem é jogou-me um beijo, o cachorro se aproximou e lá ficou, em meus pés, vendo o mundo passar. De longe, ouvia-se um som de música agradável, parecia um chorinho e, de perto, as maritacas davam sinal de vida.

A leitura acabou. Dois capítulos, o suficiente para recarregar a energia com a vitamina D, mesmo tempo enquanto carregava meu telefone. Cem por cento abastecidos, corpo, alma e aparelho.

Nesse ínterim, o banco havia ligado oferecendo pacote de serviços, a seguradora alertou que o seguro vencerá no próximo mês, a cliente pediu um texto fora do escopo e “pra ontem”, o dentista desmarcou a consulta do dia seguinte, o grupo do condomínio mantinha a discussão dos adolescentes barulhentos e uma amiga distante curtiu uma lamentação minha de três meses atrás de questão resolvida.

Este foi um dos melhores sóis que tive nos últimos dias.