Após sete anos de namoro, enfim, se conheceram

Após sete anos de namoro, enfim, se conheceram

Dia de conhecer Winglinton, seu futuro marido. Gérbera não via a hora de sentir o cheiro do amado, tocá-lo e vê-lo de pertinho.

Tudo começou sete anos antes, ela com 11 e ele, 14. A menina ingênua que gostava de videogame mantinha um canal na internet para deixar alguns comentários sobre joguinhos eletrônicos. Ambos tinham o mesmo gosto.

Certo dia, num desses encontros virtuais, um grupo de moleques que não tinha o que fazer a não ser desdenhar da vida alheia resolveu caçoar de um garoto. Defensora única do pobrezinho, Gérbera fez um simples comentário. Ao ler as singelas palavras da menina, Winglinton quis logo saber de quem se tratava, até chegar em sua conta pessoal e ouvir as falas da menina sobre alguns dos jogos da época.

“Senti um arrepio imenso”, disse o rapaz, encantado com a voz suave e tímida da pequena. Daquele dia em diante, ele sabia que seu destino estava traçado, bastava segui-lo, como manda o figurino. E ele seguiu, a começar por acompanhar todas as publicações da pequena blogueirinha.

Os recursos eram limitados. Videochamada? Não existia. Mensagem de voz? Idem. A distância parecia estreita em meio às mensagens de textos dos dois. Um encontro? Impossível e inviável. Ela vivia numa cidade próxima de uma capital lá do comecinho da ponta do mapa, e ele bem do lado oposto nessa geografia toda, a três dias de estrada. Longe, muito longe.

Ainda que constantes, as falhas de conexão jamais desconectavam esses dois, que não paravam mais de papear – e o que assuntar? Sei lá, coisas de criança, aliás, bom seria se os adultos enamorados, principalmente os casados, assuntassem assim vez em quando. Bem-vinda, dona leveza.

Voltando à pureza dos namoradinhos, já sabido do que queria, no segundo dia de papo, Winglinton pediu a menina em namoro, que relutou, mas aceitou. Sim, ela tinha onze apenas.

E o namorico começou, mesmo sem um sequer saber nadinha do outro. Por duas semanas nem nome sabiam, só o apelido. Ninguém levava isso a sério. É brincadeira de criança, só pode ser, diziam os mais próximos.

Um ano se passou, três, quatro e os dois lá, na crença de que eram, sim, namorados.

O rapazinho nem saía de casa com medo de sentir-se atraído por alguma moça da cidade e trair a namorada virtual e vice-versa. E assim tornaram-se jovens sem jamais ter sequer olhado para outra pessoa, quiçá beijado. Sim, o amor era puro e único.

Assim que completou a maioridade, Gérbera finalmente conheceria seu par, que chegaria de mala e cuia, com estada certa em sua casa e moradia plena no seu coração.

Tudo pronto, colocou seu vestido preferido, borrifou o perfume que chegou pelo correio, presente do amado, e lá foi ela, ao encontro do rapaz, que passou seus mais longos dias dentro de um ônibus, ansioso para finalmente ouvir de perto a voz daquela pequena garotinha do interior, agora menina mulher.

Não sabiam o que fazer, só sentiam um a outro, frente a frente. Aquela rodoviária lotada pareceu vazia, sem mais nada, nem ninguém por perto.

Hora do beijo

Beijo? Era o desejo dos dois. “Mas como, não sei nem o que é isso”, pensavam, na mesma sintonia.

Combinaram o feito mágico em um momento especial. E assim foi. Três dias se passaram desse encontro para finalmente serem um casal de namorados. Os lábios grudaram, feito cola.

O próximo passo dos noivos, que dividem o mesmo lar, é firmar o casamento, marcado para daqui a três meses.

(Essa crônica, escrita pela jornalista Claudia Rato, autora do livro Pra mim você morreu, foi inspirada na história real do casal Letícia e Willian)

Mulher cria seu próprio destino e atribui seu fracasso amoroso à cigana

A cigana te enganou

Crisântema nunca se conformava com o fim da relação. Apaixonada por Helicônio, recorria sempre a todos os santos, mandingas e preces para ter o amado de volta.

Ela tinha certeza de que ele era o homem da sua vida, a cigana tinha falado. Sim, ainda adolescente, foi a uma cartomante. A mulher dizia que assim que a moça completasse dezoito anos iria se deparar com alguém que mudaria completamente a sua vida.

Não via a hora de sair dos dezessete para saber quem seria essa pessoa tão especial.

No dia de seu aniversário, acordou cedinho, se arrumou, vestiu a melhor roupa, passou seu perfume preferido, adornou-se de joias, bijuterias e outros acessórios, encheu o rosto de pó, pintou os lábios de vermelho e saiu para fazer jus às palavras proferidas pela profissional do futuro.

Deparou-se numa esquina com um rapaz de bicicleta, entregador de flores. Os dois se esbarraram, ele tropeçou, e um buquê de camélias, suas flores preferidas e que o pobre moço carregava, caiu na mãos da moça.

_ Sim, é ele – sussurrou para si, abrindo um largo sorriso ao rapaz.

Ela nem percebeu, mas ele não gostou nadinha de ter perdido a entrega, que lhe renderia uma boa gorjeta. Mas diante da alegria da menina, fingiu elegância, deixou com ela o mimo e seguiu na labuta. Ainda tinha um cacto e meia dúzia de bromélias para entregar.

Empenhada na profecia da cartomante, Cris descobriu onde o moço morava e tratou de marcar um encontro. Ele aceitou, sem muita animação.

Não demorou muito para assinarem o velho contrato de fidelidade da obsoleta frase “até que a morte os separe”.

Ninguém morreu, glória a Deus, os anos se passaram e o casal vivia se desentendendo. Qualquer sinal de ameaça de perder aquele que acreditava ser sua alma gêmea era motivo dela correr atrás de forças maiores.

Num desses desentendimentos, o ex-entregador de flores saiu para comprar cigarro…

Desesperada com o sumiço do homem, prometeu a um santo qualquer que se conseguisse o amado de volta distribuiria mil santinhos dele por toda a cidade. Mal terminou a promessa e o cidadão bateu à sua porta pedindo clemência. Cris ficou tão emocionada que até se esqueceu de cumprir o combinado com o protetor religioso.

Com o tempo, a mulher precisou buscar outros recursos, tudo para garantir a palavra da cigana.

Aos domingos, ia à missa pedir a bênção do padre. Às terças, rezava uns terços na capelinha do bairro, às quintas-feiras, recebia uns passes para garantir que nenhum encosto debruçasse no ombro do casal, e quando a situação apertava, apelava para uma mandinguinha básica, uma pimentinha com o nome dele e alguma suposta oponente, uma cueca lavada no sal grosso juntinho do seu sutiã e por aí afora.

Certo dia, após uma forte tempestade de verão, Crisântema seguia num estacionamento de supermercado em direção ao seu carro quando apareceu uma mulher de feição estranha e sisuda se aproximando dela.

_ Minha filha, tenho que te falar uma coisa. É sobre ele. Dê-me sua mão. Você só vai ter paz quando…

_ Eu, hein, não quero saber nada disso, não. Sai pra lá _ disse, incomodada, a moça e saiu de perto da tal vidente desconhecida, ainda que curiosa.

Uma energia ruim pairava sempre diante do casal. Aquele rapaz da bicicleta não parecia ser o mesmo citado na tal consulta com a cigana anos atrás, mas a moça persistia, estava escrito. As cartas não mentem, pensava ela.

Helicônio sempre foi um ser distante, frio, calado, chato e mal-humorado, mas Cris insistia na crença da metade da laranja dos dezoito anos.

Em outra tarde de chuva torrencial, a mesma mulher do estacionamento ressurge, e dessa vez Cris resolveu falar com ela, temente do que poderia ouvir.

_ O santinho tá até agora esperando. Cadê a promessa paga?

_ Meu Deus, é verdade. Tá explicado. A culpa é toda minha _ disse a moça, que saiu correndo, sem esperar mais profecias e tratou de providenciar o tal milheiro do santo vingativo, distribuir por todo o bairro e sentir-se aliviada. Promessa paga.

Desde então, Crisântema sentiu-se aliviada, com uma leveza na alma que não sentia há muitos anos. Atribuiu tudo ao santo.

Noutro dia, se deparou com a tal cigana da sua juventude e falou com ela, em alto, grave e bom tom.

_ Você disse que eu encontraria alguém que mudaria a minha vida. Eu encontrei, mas você me enganou, ele não é o que eu pensava.

_ Ah, menina, você não esperou eu molhar o bico e saiu correndo, lembra? Eu tentei te alertar várias vezes, mas você sempre fugiu. Sim, a vidente do mercado também era eu. Agora você aprendeu que com santo não se brinca. Demorou, mas aprendeu. Pagou a promessa, ótimo, antes tarde, ganhou a paz de volta. Eu disse que essa pessoa mudaria a sua vida, e mudou, não mudou? O destino da gente é a gente que escolhe, só tirei as cartas, quem jogou até o fim não fui eu. Aliás, aquele dia você saiu tão depressa que esqueceu de me pagar. Já calculei os juros de lá pra cá. Vou te passar meu pix.

(Texto: Claudia Rato, autora do livro de contos Pra mim você morreu/ Imagem: Freepik)

A mulher sonhadora e o marido ogro

Após sonhar com seu ex, mulher pede ao marido sair para bem longe para continuar seu sonho e refletir sobre a passagem do tempo

Euseclânea, mulher de meia-idade, sonhou com seu o ex que não via há anos. Ainda de pijama, com os olhos inchados de tanto dormir, sentou-se na beira da cama, olhou para o nada que estava bem à sua frente e continuou a sonhar, dessa vez acordada.

Aquela manhã fria a fez levar para uma tarde de domingo quente e feliz, carregada de boas,  velhas e ardentes lembranças.

Não fosse o marido ogro a tê-la chacoalhado para tomar um café puro e amargo e comer um pão na chapa meio que sem gosto de nada, certamente Euse dormiria novamente só para saber que fim daria aquele sonho, que parecia ser bom.

Sem alternativas, olhou para o esposo e fez a ele um singelo pedido.

_ Querido, faria a mim um favor como prova do seu amor?

Sem muito desejo no olhar, o moço grunhiu em resposta, e continuou a ouvir

_ Poderia encontrar, colher e me trazer uma flor azul com espinhos vermelhos?

Ele a olhou com expressão confusa, de quem nada entendeu.

_ Uma flor azul com espinhos vermelhos? Desde quando isso existe? Isso é coisa de conto de fadas e você com esse pijaminha velho não está para princesa, minha Fiona querida.

_ Se vira. Volte só quando encontrar _ ordenou a moça, que sabia se tratar de uma busca quase que impossível naquela área inóspita e seca onde vivia praticamente atrás do fim do mundo.

Ela só queria poder dormir e sonhar um pouco mais, feito bela adormecida.

Enquanto o marido saía em sua peregrinação rumo às terras semiáridas para o agrado da mulher, Euseclânea avistava o imenso e vazio horizonte. Não sonhou, mas voltou ao tempo.

_ Que tempo foi esse que passou tão depressa e que agora parece não passar nunca mais? _ questionava a pobrezinha, que só queria uma resposta, em vão, para as suas escolhas.

A manhã deu lugar à tarde, que dava boas-vindas ao anoitecer quando apareceu um rapaz de trajes pouco diferentes do marido ogro. Era um homem bonito, esbelto, elegante e que carregava consigo um ramalhete de flores azuis com espinhos vermelhos.

Pena que Euseclânea acordou do sonho com outro chacoalhão do atual companheiro de movimentos bruscos. Ele não encontrou a tal rosa exótica, mas fez questão de dar a ela um pequeno cacto como forma de seu amor.

Ela sorriu para ele, levantou-se e foi botar o feijão no fogo.

E agora, Josué? Conto do Tatu

Este conto é inspirado na história de um menino que se perdeu num túnel/ imagem ilustrativa

_ Tatu? Tatu de quê?

_ Tatu.

_ Como assim, Tatu. Tatu e o que mais?

_ Só Tatu.

_ Assim o senhor não pode prosseguir, faz um esforço e tenta lembrar.

Mil novecentos e oitenta. 27 de outubro. Dez da manhã.

_ Josué, óh, Josué, venha cá, meu filho. Vá até a casa de sua avó e entregue a ela esse pedaço de carne seca, mas ande logo que ela tá te esperando.

_ Tá bom, mainha, já vô. Vô só calcá a chinela, vô num pé e volto no outro.

_ Vá descalço mesmo porque se demorar a sandalha vai cantar.

_Mas o sol tá quente, mainha.

_ Não quero saber, ande logo, moleque, calça logo isso aí.

Mil novecentos e oitenta. 27 de outubro. Dez e cinco da manhã.

_ Ô, Josué, cê não qué brincá de taco com a gente?

_  Posso não, tenho que levar isso aqui pra minha vó.

_ Dexa de bestagem, é rapidinho, só uma vez.

_ Tá bom, tá bom, eu vou, mas olha, não posso demorar.

Primeira tacada de Josué e a bolinha vai parar num bueiro.

_ E agora, Josué, o que eu vou dizer pro Anastácio, ele me emprestou.

_ Deixa comigo, eu desço lá e pego num pé só. Olha a carne da minha vó senão minha mãe vai me matar.

Josué e o amigo Caju quebraram parte da tampa, se entreolharam, e Josué, com olhar valentão e perna bamba, fez sinal de que resgataria a tal bolinha. O colega só precisava segurar o moleque pelos pés para que não caísse bueiro abaixo.

_ Sai, cachorro, sai pra lá.

Loló, o vira-latas esfomeado de cor caramelo e rabo pintado, aproveitou a distração do menino para dar o bote na carne. Sem saber o que fazer, Caju largou de mão do amigo para correr atrás do meliante safado.

_ Socorooooooo. Nossa, que lugar escuro aqui. Bolinha, cadê você, vamos, eu tenho mais o que fazer, minha mãe vai me matar.

Josué não se deu conta, mas se distanciava cada vez mais de onde estava. Jamais imaginou avistar em território subterrâneo túnel tão gigante, visto no olhar de um menino de apenas oito anos que mal sabia que aqueles tubos acimentados um dia tirariam o povo de Cercadinho do Norte da lamaceira que era cada vez que chovia naquele esquecido bairro de Cajueiro do Agreste.

Até eco fazia. Num primeiro momento, Josué gostou da brincadeira.

_Ei. Eeeeeeeeeeeei. Oi. Ooooooooooi. Nossa, que legal, eu falo e escuto a minha voz.

O garoto não se deu conta, mas estava perdidinho, sem noção de nada, de tempo, nem distância.

Mil novecentos e oitenta. 27 de outubro. Seis da tarde.

Aquela empolgação toda de se deparar com o inusitado deu vez ao medo. Até mesmo um frio inexplicável em meio ao calor de quase quarenta graus apossou-se do menino, que passou a sentir pavorosos calafrios, já que o que se ouvia lá de baixo era um forte barulho de trovão, diante da escuridão que tomou conta do local. Sim, o sol quente daquela tarde já dava lugar a uma forte tempestade prestes a chegar.

Lá embaixo havia muita lama e poças d’água da chuva do dia anterior. Josué parecia ter entrado no meio da terra, feito Tatu.

Ele olhava, procurava, procurava, e nada de avistar sequer um tiquinho de claridade. Caiu aos prantos, chorou como nunca. Só pensava no quanto fora desobediente e que se chegasse vivo em casa teria seu coro arrancado pela mãe, tamanha fúria que estaria.

Nunca aquele pobre garoto esteve tão sozinho e ao mesmo tempo tão acompanhado, isso porque pequenos roedores, aos quais ele tinha pânico só de ver em desenhos, circulavam por lá como quem dominasse o espaço.

_ Ó, minha mainha, me perdoe por tudo o que eu te fiz, eu sempre fui um menino bom, tirando as vezes que eu roubava seu trocado pra comprar dindim e colocava a culpa no Nazário, seu filho caçula que você tanto defende, eu fui um bom menino.

– Ó, Deus, me tira daqui. Eu prometo, eu juro que prometo, por tudo o que é mais sagrado, que se o senhor me tirar daqui eu viro padre. Não. Padre, não. Eu volto pra catequese, tá bom assim? Prometo também que nunca mais vou pegar goiaba do pé da casa da dona Herculana e também não jogo mais manga estragada no quintal do seu Silval, aquele chato que não deixa a gente jogar bola na rua. Eu prometo tudo, até tirar nota boa na escola, vou estudar todos os dias, acordar cedo e tomar banho toda noite. Mas me tira daqui. Minha mainha deve estar preocupada, não precisa me matar aqui não, porque quando eu sair ela vai fazer isso comigo, pode ter certeza, só me tira daqui, por favor.

Assim que olhou para cima para finalizar as poucas frases que sabia do Padre Nosso, avistou uma frestinha de luz que ainda restava daquele fim de tarde. Foi como achar ouro na Serra Pelada, petróleo em alto mar ou, no caso de Josué, encontrar a última figurinha do seu álbum de coleção preferido. Ele só precisava de um jeito de sair de lá, já que não tinha mais nem voz de tanto gritar por socorro.

O barulho da chuva só aumentava e alguns largos pingos começaram a cair por todos os lados.

Josué bem que tentava, mas não conseguia abrir a tampa do bueiro, até que, num forte impulso, conseguiu. Já com a cabeça apontada para o lado de fora, se deparou com uma movimentada avenida de asfalto e carros passando sobre ela por todos os lados, o que o fez recuar para o subsolo sombrio.

_ Vamos, Josué, você consegue. Não tenha medo, menino, vai na fé, nenhum carro vai passar pela sua cabeça. Ai, meu Deus, me ajuda, vai.

Depois de várias tentativas, muita reza, suor e desespero, o moleque abriu novamente a tampa e conseguiu sair daquele local, que sequer imaginava onde seria.

Uma viatura da polícia viu o pobre lamacento e o levou para o seu bairro, a dez quilômetros de lá.

Mal sabia Josué, mas de frente para o tal bueiro, da bolinha, da carne, do Loló e do Caju, estavam o prefeito, o chefe da polícia, do corpo de bombeiros, o padre, o médico, a benzedeira e a televisão, com transmissão ao vivo em busca de alguma notícia do sumido.

Com uma cinta na mão, também se fazia presente dona Jerusa, cabelo desmazelado, olhos inchados de tanto chorar e cara embraseada, como quem estava prestes a explodir.

E foi assim que Josué nunca mais se esqueceu do dia em que levou a maior surra da vida, um dia que ele sempre quis esquecer, mas tinha que se lembrar a cada pergunta:

Tatu? Tatu de quê?

(Texto: Claudia Rato jornalista e autora do livro de contos Pra mim você morreu!

…, a moça sem nome

Já imaginou nascer, crescer, ir para a escola, fazer amigos, namorar, casar, sem ter um nome próprio, sequer um apelido ou sobrenome?

Assim vivia …, que muitas vezes sonhava acordada pensando como seria se pudesse se chamar Maria, Joana, Joaquina, Clarice, Mirna, Luana…

… passava dias lendo clássicos da literatura para se aprofundar nas personagens e ver se seus epítetos teriam alguma coisa a ver com ela. Das Alices, às Capitus, Julietas, Emmas, Lolitas, Annas, estava sempre ela a observar.

A menina negra, de várias tranças no cabelo, adorava esse universo literário, mas nunca nenhum nome a agradava a ponto de presenteá-la com um registro único.

O tempo passou, … se casou, separou, teve filhos e todos tinham ao menos três nomes compostos, eram eles, Julian Mateo Carlito, Anita Clara Maria e Matilda Monique Angel.

A ausência de um nome era para … a presença infinita de várias possibilidades, pois sentia-se livre, sendo única e o mesmo tempo podendo ser quem bem quisesse a cada instante. E foi o que fez, cada dia dando a si uma denominação diferente.

A imaginação corria à solta e, com ela, suas fantasias e desejos de ser várias mulheres num único corpo. Já foi Crisália, Benedita, Ana, Marcelina, Justina, Diana, Giordina, Elisabeth, Isabel, Estefânia, Lindaura, Casemira, Clarita, Leonilda, Antenora…

Para cada dia, uma personagem, uma personalidade, uma vida nova, um novo amor.

(Imagem ilustrativa: Freepik)