O silêncio ensurdecedor

Já era madrugada quando ouvi um som em meio ao silêncio. Era o trem, algo que não escutava fazia um bom tempo, tempo esse que ouvia durante o período de lockdown durante a pandemia de coronavírus em que nada, nem ninguém, podia sair nas ruas. Ouvia-se, ainda que bem de longe, um distante barulho do que parecia ser a única existência fora de nossas casas – era ele, passando, vazio, sem carga, sem gente, apenas com o seu apito gritante.

Ainda pensando neste silêncio total, capaz de me fazer ouvir algo tão longe, semana passada participei de um evento de Comunicação na minha cidade em que um dos palestrantes questionava a plateia sobre o significado da palavra comunicar, ao passo que eu respondi não exatamente a pergunta, mas creio que chutei na trave ao me lembrar de outros recursos silenciáveis e ocultadores que me remeteram ao tema.

Não coloquei a locomotiva na frente nem atrás dos bois, apenas disse que o referido verbo muitas vezes também se faz na sua ausência, no silêncio, no não falar, não responder, sendo essas também formas de se expressar.

E esse tal silêncio acontece muitas vezes numa pergunta capiciosa de um repórter com o entrevistado esquivando-se; na falta de retorno de uma assessoria de imprensa a um jornal, que geralmente segue seu texto com a frase “… mas até o fechamento desta reportagem não obtivemos resposta” e também em casa, no nosso dia a dia, em que a não comunicação se faz presente, principalmente após uma discussão, seja ela relevante ou não.

Se não fui clara, experimenta chegar tarde da noite sem avisar o companheiro ou a companheira. Depois do inevitável debate, amanhece um silêncio ensurdecedor em que as panelas, portas dos armários e até mesmo os beija-flores parecem gritar enquanto todos mantém-se na plena inexistência da fala.

Situações assim me lembram uma atriz famosa que relatou anos atrás a um jornalista ter parado de conversar, segundo ela “do nada”, com o marido por longa data. Ela disse que uma vez foi pegá-lo no aeroporto e, sem saber o porquê e sem motivo, não se falaram nesse dia e assim continuaram, no mesmo teto, sem dizer uma palavra um ao outro.

Pra fechar este texto, fiquei curiosa para saber o desenrolar desse silêncio matrimonial e, pasme, li que celebraram recentemente 50 anos de casados, sob o depoimento da famosa de que a cumplicidade é fundamental, a convivência importante e coisa e tal. Será essa a receita? Falar menos, não falar, não comunicar, não transar, pegar o trem e ver onde vai dar?

Não sei não, acho que cada caso é uma estação diferente que esse comboio vai parar, mas de uma coisa eu tenho certeza, esse silêncio ensurdecedor às vezes é gritante, fala alto demais, chega a estourar os tímpanos.

Confesso que muitas vezes mato a calmaria com uma TV ligada, sem sequer saber o que ela diz, apenas para não ter que ouvir o bater das portas dos armários, das panelas, o incômodo som do simples mastigar – misofonia? Sim, ela habita em mim. Não sei onde isso vai dar, só sei que quanto aos beija-flores, esses são bem-vindos a qualquer hora.

(Imagem: Freepik)

Tem prenda pra dar?

Tem prenda pra dar?

Vou te falar que se alguém bater na porta da minha casa com essa frase será recebido com um sorriso carregado da boa e velha nostalgia. Não sei se darei o tal donativo em formato de algum resto de compra de supermercado, mas uma calorosa recepção será garantida.

Nessa era em que tudo é pix, seja no comércio, na feira, até mesmo no farol com alguém te pedindo um trocado, tô achando que esse ano a pedida terá outros moldes e não mais em forma de pacote de sal, de açúcar, um sabonete ou algo nessa linha.

O assunto veio à tona numa roda de conversa sobre preparativos de uma escola para a tão esperada festa junina. Esse papo me rendeu um conhecimento jamais apercebido por mim durante décadas, o que me valeu o dia, isso porque parece que as músicas também sofreram alterações, mudando um pouco o sentido para evitar polêmicas com protetores de assuntos diversos.

Segundo consta, uma das canções mais populares mencionava maltrato a uma pobre rastejante com a frase “olha a cobra” seguida de um “já mataram”, embora eu, distraída, sempre cantei diferente, então não carrego esse peso.

Na minha terra, essa bichinha nunca foi morta já que sua presença era uma falácia, uma vez que entoávamos em alto em bom som “olha a cobra, é mentira”, mas ok, como todo conhecimento é válido, agradeço o aprendizado.

Isso me fez lembrar de outras músicas inapropriadas do passado, já que não se atira mais o pau no gato nem se assustam as criancinhas com as canções de ninar em que o boi da cara preta ou a cuca poderiam surgir a qualquer hora para assombrar o sono dos pequenos. Cantemos para as criancinhas um funk leve ou um piseirinho suave, melhor, assim elas dormem em paz.

Voltando às prendas, esse papo trouxe uma revelação inusitada, ao menos para mim, santa inocente. Sem muitos recursos, uma pessoa, a quem podemos chamar de “leve meliante”, revelou ter desviado alguns mantimentos da tradicional pedida das criancinhas casa a casa para ter o que pôr na panela nos dias em que o marido não conseguia trazer seu ganha-pão com seus bicos de carpinteiro, motivo pelo qual a classe da sua filha nunca ganhava o tão sonhado passeio ao nostálgico parque de diversões hoje não mais existente, mas que alegrou muita gente por quatro décadas em São Paulo – essa era a moeda de troca aos alunos, a turma que arrecadava mais brindes ganhava o passaporte para a Disneylândia dos abastados paulistanos. Maricotinha nunca foi ao tal parque mas, em contrapartida, se lembra até hoje do fubazinho preparado sempre nessa época do ano com tanto amor pela zelosa mãe.

(Crônica da jornalista e escritora Claudia Rato)

Não espere o fim do ano, é tempo demais!

Fico imaginando o que passa na cabeça de uma pessoa idosa quando se depara com um ente, amigo mais novo ou até mesmo da própria geração partindo.

Não deve ser fácil olhar para frente e pensar “mas ele estava sábado aqui, e agora, com quem vou falar” ou “quem vai compartilhar comigo das lembranças de um passado que só quem é do meu tempo viveu/” e “quem vai me visitar pra dizer nada, apenas para nos fazer companhia um ao outro?”…

Quando me deparo com essa situação fico pensando que não sei se quero durar tanto e ver tanta gente indo embora assim, antes de mim. Quero vida longa, mas todo mundo juntinho comigo. É pedir muito? É, eu sei.

Na minha inocente utopia, queria que todos ao meu redor vivessem muito, mas não sabemos e não temos controle disso. Deveria existir uma norma ou uma mudança de tempos em tempos na tal Carta Magna da Vida.

Mas isso não está nem nunca estará ao nosso alcance. Uma coisa eu sei e sempre digo, desde pequenina, vamos aproveitar enquanto está todo mundo vivo, vamos nos reunir, vamos fazer aquele Natal da nossa infância que mal cabia tanta gente na sala, todos juntos, ainda que vivamos numa eterna discussão boba de família o resto do ano.

Mas o Natal é tão longe que às vezes não dá tempo de chegar, então, famílias, pessoas, amigos, reúnam-se mais, façam mais Natais e amigos secretos de janeiro a dezembro, quantas vezes necessário for.

E agora, Josué? Conto do Tatu

Este conto é inspirado na história de um menino que se perdeu num túnel/ imagem ilustrativa

_ Tatu? Tatu de quê?

_ Tatu.

_ Como assim, Tatu. Tatu e o que mais?

_ Só Tatu.

_ Assim o senhor não pode prosseguir, faz um esforço e tenta lembrar.

Mil novecentos e oitenta. 27 de outubro. Dez da manhã.

_ Josué, óh, Josué, venha cá, meu filho. Vá até a casa de sua avó e entregue a ela esse pedaço de carne seca, mas ande logo que ela tá te esperando.

_ Tá bom, mainha, já vô. Vô só calcá a chinela, vô num pé e volto no outro.

_ Vá descalço mesmo porque se demorar a sandalha vai cantar.

_Mas o sol tá quente, mainha.

_ Não quero saber, ande logo, moleque, calça logo isso aí.

Mil novecentos e oitenta. 27 de outubro. Dez e cinco da manhã.

_ Ô, Josué, cê não qué brincá de taco com a gente?

_  Posso não, tenho que levar isso aqui pra minha vó.

_ Dexa de bestagem, é rapidinho, só uma vez.

_ Tá bom, tá bom, eu vou, mas olha, não posso demorar.

Primeira tacada de Josué e a bolinha vai parar num bueiro.

_ E agora, Josué, o que eu vou dizer pro Anastácio, ele me emprestou.

_ Deixa comigo, eu desço lá e pego num pé só. Olha a carne da minha vó senão minha mãe vai me matar.

Josué e o amigo Caju quebraram parte da tampa, se entreolharam, e Josué, com olhar valentão e perna bamba, fez sinal de que resgataria a tal bolinha. O colega só precisava segurar o moleque pelos pés para que não caísse bueiro abaixo.

_ Sai, cachorro, sai pra lá.

Loló, o vira-latas esfomeado de cor caramelo e rabo pintado, aproveitou a distração do menino para dar o bote na carne. Sem saber o que fazer, Caju largou de mão do amigo para correr atrás do meliante safado.

_ Socorooooooo. Nossa, que lugar escuro aqui. Bolinha, cadê você, vamos, eu tenho mais o que fazer, minha mãe vai me matar.

Josué não se deu conta, mas se distanciava cada vez mais de onde estava. Jamais imaginou avistar em território subterrâneo túnel tão gigante, visto no olhar de um menino de apenas oito anos que mal sabia que aqueles tubos acimentados um dia tirariam o povo de Cercadinho do Norte da lamaceira que era cada vez que chovia naquele esquecido bairro de Cajueiro do Agreste.

Até eco fazia. Num primeiro momento, Josué gostou da brincadeira.

_Ei. Eeeeeeeeeeeei. Oi. Ooooooooooi. Nossa, que legal, eu falo e escuto a minha voz.

O garoto não se deu conta, mas estava perdidinho, sem noção de nada, de tempo, nem distância.

Mil novecentos e oitenta. 27 de outubro. Seis da tarde.

Aquela empolgação toda de se deparar com o inusitado deu vez ao medo. Até mesmo um frio inexplicável em meio ao calor de quase quarenta graus apossou-se do menino, que passou a sentir pavorosos calafrios, já que o que se ouvia lá de baixo era um forte barulho de trovão, diante da escuridão que tomou conta do local. Sim, o sol quente daquela tarde já dava lugar a uma forte tempestade prestes a chegar.

Lá embaixo havia muita lama e poças d’água da chuva do dia anterior. Josué parecia ter entrado no meio da terra, feito Tatu.

Ele olhava, procurava, procurava, e nada de avistar sequer um tiquinho de claridade. Caiu aos prantos, chorou como nunca. Só pensava no quanto fora desobediente e que se chegasse vivo em casa teria seu coro arrancado pela mãe, tamanha fúria que estaria.

Nunca aquele pobre garoto esteve tão sozinho e ao mesmo tempo tão acompanhado, isso porque pequenos roedores, aos quais ele tinha pânico só de ver em desenhos, circulavam por lá como quem dominasse o espaço.

_ Ó, minha mainha, me perdoe por tudo o que eu te fiz, eu sempre fui um menino bom, tirando as vezes que eu roubava seu trocado pra comprar dindim e colocava a culpa no Nazário, seu filho caçula que você tanto defende, eu fui um bom menino.

– Ó, Deus, me tira daqui. Eu prometo, eu juro que prometo, por tudo o que é mais sagrado, que se o senhor me tirar daqui eu viro padre. Não. Padre, não. Eu volto pra catequese, tá bom assim? Prometo também que nunca mais vou pegar goiaba do pé da casa da dona Herculana e também não jogo mais manga estragada no quintal do seu Silval, aquele chato que não deixa a gente jogar bola na rua. Eu prometo tudo, até tirar nota boa na escola, vou estudar todos os dias, acordar cedo e tomar banho toda noite. Mas me tira daqui. Minha mainha deve estar preocupada, não precisa me matar aqui não, porque quando eu sair ela vai fazer isso comigo, pode ter certeza, só me tira daqui, por favor.

Assim que olhou para cima para finalizar as poucas frases que sabia do Padre Nosso, avistou uma frestinha de luz que ainda restava daquele fim de tarde. Foi como achar ouro na Serra Pelada, petróleo em alto mar ou, no caso de Josué, encontrar a última figurinha do seu álbum de coleção preferido. Ele só precisava de um jeito de sair de lá, já que não tinha mais nem voz de tanto gritar por socorro.

O barulho da chuva só aumentava e alguns largos pingos começaram a cair por todos os lados.

Josué bem que tentava, mas não conseguia abrir a tampa do bueiro, até que, num forte impulso, conseguiu. Já com a cabeça apontada para o lado de fora, se deparou com uma movimentada avenida de asfalto e carros passando sobre ela por todos os lados, o que o fez recuar para o subsolo sombrio.

_ Vamos, Josué, você consegue. Não tenha medo, menino, vai na fé, nenhum carro vai passar pela sua cabeça. Ai, meu Deus, me ajuda, vai.

Depois de várias tentativas, muita reza, suor e desespero, o moleque abriu novamente a tampa e conseguiu sair daquele local, que sequer imaginava onde seria.

Uma viatura da polícia viu o pobre lamacento e o levou para o seu bairro, a dez quilômetros de lá.

Mal sabia Josué, mas de frente para o tal bueiro, da bolinha, da carne, do Loló e do Caju, estavam o prefeito, o chefe da polícia, do corpo de bombeiros, o padre, o médico, a benzedeira e a televisão, com transmissão ao vivo em busca de alguma notícia do sumido.

Com uma cinta na mão, também se fazia presente dona Jerusa, cabelo desmazelado, olhos inchados de tanto chorar e cara embraseada, como quem estava prestes a explodir.

E foi assim que Josué nunca mais se esqueceu do dia em que levou a maior surra da vida, um dia que ele sempre quis esquecer, mas tinha que se lembrar a cada pergunta:

Tatu? Tatu de quê?

(Texto: Claudia Rato jornalista e autora do livro de contos Pra mim você morreu!

“Vida curta” a todos nós

Um dia desses uma pessoa parou e me perguntou se eu não tinha inveja daquelas mulheres estilosas, de corpo alinhado e definido, pele esticada feito rede curta de balanço, bonitonas, que não saem do salão, que estão toda semana com a unha feitinha, cabelo arrumado, como se se produzissem a cada dia para ir ao seu próprio casamento.

Fui assertiva em responder que não e afirmativa ao dizer que tenho inveja é daquela mulher que desperta com o alvorecer, em pleno domingo, com o galo ainda cantando as últimas notas, que toma uma ducha fria, prepara um café especial regado a frutas e integrais e sai pra correr, andar de bicicleta, nadar, patinar. Essa, sim, eu invejo, aliás, admiro, palavra certa. Quando eu amadurecer de verdade quero ser assim.

Uma dessas admiráveis certo dia me disse que precisamos aproveitar muito porque a vida é curta como um fim de semana na praia, passa voando que a gente nem sente. É verdade. Curtíssima. Mas daí veio um rapaz de poucos afazeres e nenhuma alegria no olhar, numa contradição que me deixou confusa, dizendo que ela é longa, muito longa.

Parei, pensei, respirei e cheguei a uma conclusão de que a fita métrica e o relógio são os mesmos tanto para a moça, que parece medir a vida com uma colher de chá, enchendo-a até o topo com os melhores ingredientes e leveduras para dar a ela o sabor e a imensidão que merece, como para o rapaz, que faz caber na sua grande concha existencial uma sopa aguada, sem sal, sem graça, sem nada .

A diferença está no quão se aproveita, ou não, dessa tal coisa chamada vida, que de tão única não achei nenhum sinônimo que a substituísse aqui. Então, o que me resta é desejar “vida curta” a todos nós.

(Texto: Claudia Rato, autora do livro Pra mim você morreu / Imagem: Freepik)