Saí Mateus e voltei Mickaella para o trabalho, mas um dia precisei me “desconstruir”

“Consegui a alteração do meu nome e gênero no meu registro e me sinto mais aliviada”

Essa é a história de uma pessoa que resolveu encarar todos os desafios que viriam ao tornar pública a sua transexualidade. Da noite para o dia, tomou coragem e mudou completamente a sua vida. Só ela não esperava ter que voltar atrás numa situação delicada para não se sentir oprimida por conta do preconceito.

Era próximo das oito da manhã de uma segunda-feira típica de início de rotina de trabalho quando Mickaella (39) estava pronta e disposta a revelar a todos sua verdadeira identidade até então escondida do seu convívio profissional.

“Cheguei em casa tarde da balada e decidi não remover maquiagem, nem peruca, e simplesmente que seria a hora de todos do meu trabalho saberem quem eu sempre quis ser e quem a partir daquele instante me tornaria, a Mickaella, e não mais o funcionário Mateus que conheciam.

Dormi um pouco, saltei da cama, pus o uniforme, peguei o Uber e fui trabalhar, disposta a aceitar a Mickaella por mim mesma. Tinha de ser naquele dia, naquele momento, não foi algo que parei para pensar, embora fosse esse um desejo latente”, conta.

Ainda no carro, passou mensagens a algumas pessoas mais próximas do trabalho para falar da novidade, pedindo para que preparassem o clima para a sua chegada.

“Pedi que me recebessem bem na recepção, pois isso seria muito importante para mim. E assim foi feito. Veio gente de tudo que é setor prestar algum tipo de apoio, de palavra positiva, de força, e aquilo foi tomando uma proporção tão grande que a adrenalina estava a mil e eu nem percebi o quão tudo foi impactante para todos nós.

A empresa onde trabalho me dá orgulho fazer parte, ela é inclusiva. O gerente prontamente organizou uma reunião com todas as lideranças e estabeleceu que a partir daquele momento a loja deveria me chamar pelo nome social, que o respeito seria a palavra de ordem e qualquer que fosse o mínimo ato de intolerância, tratativas seriam dadas. Lembro muito mais das congratulações pela minha coragem do que qualquer outro sentimento ou olhar controverso”.

Mas Mickaella relata que, embora tenha se sentido acolhida por boa parte do pessoal, alguns olhares tortos no dia a dia ainda a incomodam.

“Você percebe quem não senta ao seu lado pra almoçar como antes, quem desvia um assunto que você tenta desenvolver, quem ainda compara Mateus com Mickaella. Eu arrisco dizer que senti mais rejeição num olhar das meninas (mulheres cis) do que dos meninos (homens cis). Sim, isso mesmo. Percebi homens interagindo comigo de modo acolhedor e natural como nunca imaginei, quando eu esperava isso de uma maioria de mulheres”, desabafa.

Aí entra a importância de um preparo emocional para encarar as inevitáveis negativas. De acordo com a psicóloga Ana Helena Elias Alvim, psicanalista voluntária do Ambulatório de Gênero e Sexualidades do Hospital de Clínicas da Unicamp, a questão da transgeneridade ainda caminha em passos lentos, razão pela qual o apoio, o acolhimento e o acompanhamento psicológico tornam-se essenciais para encarar situações desafiadoras.

 “Há muita resistência de diversas esferas da nossa sociedade e a ausência de uma rede de apoio leva a pessoa trans a vivências de angústia e sofrimento, por enfrentar de modo solitário repetidas situações de preconceito e violências”, explica Alvin.

Despertei em outras pessoas serem quem elas quiserem

Ainda que passe por situações complexas no seu cotidiano, Mickaella acredita que a sua história pode ter sido transformadora para outras pessoas do seu ambiente profissional.

“Logo que assumi a minha nova identidade, senti um peso significativo para outras pessoas trans no meu convívio de trabalho porque, embora o respeito, o acolhimento e a identidade de gênero estejam inseridas nos valores da empresa, as pessoas têm suas inseguranças e esse meu movimento despertou nelas uma motivação para serem quem são, afinal, no meu caso, era uma chefe de setor que se assumia trans e, queira ou não, a hierarquia pesa na representatividade e toda essa aceitação me deixa muito aliviada.

Mas Mickaella relembra que duas semanas antes de sentir esse alívio de se apresentar a todos como pessoa trans passou por uma forte crise de depressão, chegando a se despedir de amigos e familiares por telefone com a intenção de acabar com a sua vida.

“Por sorte, recebi alguns amigos que me acalmaram e me fizeram companhia nesse dia, mas eu não aguentava mais ser quem eu não queria ser. Não suportava mais me mostrar na noite e temer o dia, pois o dia é a representação clara da convivência social. Pessoas vão à escola, padaria, farmácia, trabalham, circulam, põem a cara no sol, e eu também já passava da hora de vivenciar tudo isso e deveria ser parte dessa realidade, porque não se trata de surgir da noite pro dia num estalo de dedos, era sobre se esconder na escuridão pra se proteger da luz nua e crua”, revela.

Segundo a psicóloga, esse tipo de relato é comum na escuta de pessoas trans ou travestis, e assumir um lugar de luta por esses direitos básicos torna-se extremamente desafiador para elas, já que as experiências negativas, bem como a falta de uma convivência natural, geram e acentuam a uma exclusão, deixando-as à margem da sociedade.

“Em consequência de todas essas vivências, embasadas pela teoria de estresse, muitas pessoas desenvolvem quadros de ansiedade e depressão, por exemplo, que podem ter uma influência em tentativas de suicídio, principalmente quando não tratadas e acompanhadas por especialistas da saúde mental”, alerta a profissional.

Mas foi só depois de uma conversa com a irmã sobre a sua angústia que Mickaella tomou coragem para encarar a vida e enfrentar todos os desafios que viriam pela frente. “Conversamos pela primeira vez abertamente sobre a transição. Recebi total apoio e me senti livre e disposta a assumir minha identidade no trabalho e na sociedade inteira, inclusive para minha mãe, que é a parte mais importante nesse processo, e ela aceitou, dizendo que sempre soube disso. Me sinto sortuda e privilegiada nesse sentido.

Depois de passar pelo seu maior receio em sua transição no que se refere à aceitação da família, Mickaella passou a esbarrar em situações burocráticas e que levavam a outras preocupações, entre elas a de receber tratamento digno na área da Saúde.

“Jamais tive a ilusão de que seria fácil, de fato não é. Atualmente, minha luta tem sido para conseguir atendimento para tratar das questões hormonais e até mesmo mudança de sexo. Muitas de nós acabam tomando hormônios de maneira irresponsável, por conta própria e não assistida por um especialista, por causa do difícil acesso no atendimento.

Também esbarrei por muito tempo em questões relacionadas à alteração do nome social em todos os meus documentos, incluindo meu diploma acadêmico, já que tudo isso custa um preço considerável. São barreiras que passamos e todos os dias é um não diferente, mas eu creio que vou chegar lá, estou tentando me agarrar ao sonho novamente. Preciso renascer e brilhar com luz própria”.

Diante da dificuldade em trocar o nome social, o maior receio que Mickaella tinha aconteceu. Ela relata dois episódios de atendimento na Saúde que a deixaram incomodada e vulnerável. “Um deles foi quando fui tomar a terceira dose da vacina contra a Covid-19 e a moça da triagem pegou meu documento, olhou pra mim, que estava visivelmente feminina, e me chamou pelo nome de registro. Aquilo me doeu demais, não me esqueço desse episódio”.

Para evitar esse constrangimento, na segunda situação Mickaella tomou uma decisão que lhe custou o retrocesso de toda uma construção já consolidada.

“Sempre tive muito medo de passar mal, ter que parar num hospital e ver o nome Mateus no painel e não saber como os profissionais da saúde lidariam com essa situação. Tinha medo de ser mal atendida por conta disso, sei lá”.

Para evitar esse mal-estar, Mickaella voltou a ser Mateus por um dia, numa noite em que precisou de atendimento médico. Ela conta que preferiu deixar a peruca de lado, as maquiagens e as roupas de sua nova identidade para ser quem era antes da transição, tudo para evitar o constrangimento e por receio de ser mal atendida no momento em que sua saúde estava debilitada.

“Sim, me ‘desconfigurei’, me ‘desconstruí’ e a sensação foi de impotência perante a burocracia no que se refere à mudança do nome social e todo o preconceito ainda existente. Foi horrível, mas preferi que fosse assim, mas acredito que com a luta por nossos direitos um dia essa realidade vai mudar e as pessoas vão nos ver como a gente realmente é e merece ser vista”.

Hoje, Mickaella não precisa mais se esconder por trás de um documento. No final de 2022, conseguiu sua tão esperada mudança de nome e gênero em seu documento de registro. “Virei o ano com tudo novo, agora consegui trocar também o meu título de eleitor e RG e espero conseguir fazer todas as outras alterações. É uma luta diária, uma conquista a cada dia e só o que a gente precisa é de respeito. Só quero seu quem eu realmente sou e ter a paz de espírito que mereço”.

(Imagem: arquivo pessoal)

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