O despertar de Euseclânea

O despertar de Euseclânea

Em um recanto da existência, Euseclânea, dama de meia-idade, contemplou nos recônditos de seu sono o espectro de seu ex-amor, há longo tempo distante de sua visão. Envolta em seu traje noturno, com os olhos tumefatos pelo repouso profundo, assentou-se à beira da alcova, direcionando seu olhar ao nada que se desvelava diante de si, e entregou-se a sonhos despertos.

A manhã gélida a transportou para uma tarde dominical, calorosa e feliz, repleta de recordações benéficas, antigas e efervescentes.

Não fora o consorte ogro, a instigá-la com a imperatividade de um café puro e amargoso e um pão na chapa, destituído de sabor, certamente Euseclânea se entregaria novamente ao sono, apenas para decifrar o desenlace daquele sonho promissor.

Desprovida de alternativas, lançou um olhar ao esposo e formulou-lhe um pedido singelo.

“Querido, faria-me um obséquio como atestado de vosso amor?”

Com escassa animação no olhar, o moço grunhiu em resposta, concedendo espaço para que ela prosseguisse. “Poderia localizar, colher e trazer-me uma flor azul com espinhos vermelhos”

Fitou-a com expressão perplexa, como quem não compreende a solicitação.

“Uma flor azul com espinhos vermelhos? Desde quando tal coisa existe? Isso é matéria de contos de fadas! E vós, com esse camisolão antiquado, não estais a ostentar a elegância de uma personagem à altura”.

“Desenrascai-vos. Retornai apenas ao encontrar”, sentenciou a dama, ciente da quase impossibilidade da busca naquela região inóspita e árida onde habitavam, praticamente no limiar do mundo. Tudo o que almejava era a prerrogativa de repousar e sonhar um pouco mais, como uma mulher de nobre linhagem.

Enquanto o marido embarcava em sua peregrinação rumo às terras semiáridas, a fim de agradar à esposa, Euseclânea vislumbrava o vasto e ermo horizonte. Não sonhou, mas retrocedeu no tempo.

“Que época foi essa que transcorreu tão velozmente e que agora parece estagnar perpetuamente?”, indagava a desafortunada mulher, em busca, em vão, de respostas para suas escolhas.

A manhã cedeu lugar à tarde, que acolheu a noite quando surgiu um rapaz trajado de maneira pouco discrepante do marido. Um homem formoso, esbelto, elegante, carregando consigo um ramalhete de flores azuis com espinhos vermelhos, endêmicas da flora local.

Lamentavelmente, Euseclânea despertou do devaneio com outro abalo provocado pelo atual amado de modos bruscos. Este não encontrou a exótica rosa, mas fez questão de presenteá-la com um pequeno cacto, em demonstração de seu afeto.

Ela sorriu para ele, levantou-se e dirigiu-se à diligência de pôr o feijão ao fogo.

(Adaptação do conto original A mulher sonhadora e o marido ogro, de Claudia Rato, reescrito pela Inteligência Artificial a pedido da autora para a versão do escritor português Eça de Queiroz. A ideia era ver como ficaria essa escrita com o uso dessa tecnologia no tempo e ao estilo desse autor. A imagem também foi extraída da I.A.)

A mandinga da caatinga

Juvanilda se apaixonou por Estoclênio no dia em que o rapaz foi até sua casa resolver um problema de encanamento. Desde essa visita, volta e meia a moça dava um jeitinho de chamar o sujeito para fazer outros reparos. Já não havia mais cano quebrado para trocar, até que numa dessas idas do então profissional a mulher partiu para o ataque.

E não é que Estoclênio gostou? Em menos de uma semana, lá estava o casal dividindo o mesmo teto, no semiárido sertão de um pequeno e pacato povoado de Caatinga de Juazeiro do Sertão Velho.

Assim que juntou os trapos com Juvanilda, Estoclênio largou a vida de encanador para trabalhar na roça, no assentamento do cunhado.

Certo dia, uma prima da tia avó do pai de Juvanilda, a Crispiniana, resolveu voltar a sua terra natal para relembrar os bons tempos vividos no agreste, de quando as crianças banhavam sem roupa nenhuma no rio, só pensando em se divertir e curtir a bela e boa infância que não volta mais.

Cris ficou tão emocionada com aquela lembrança que resolveu voltar literalmente ao tempo. Como não havia ninguém beirando o pequeno lago, a moça, de falso loiro no cabelo e pernas carnudas, delineadas de tanto puxar ferro na academia da capital, resolveu reviver o passado, de corpo e alma. Tirou seu vestidinho florido de seda e ficou do jeitinho que veio ao mundo, prestes a se esbaldar naquela límpida e calma água.

Juva não sabia, mas por trás da carinha de santo do amado, de pessoa tímida de pouco menos de um metro e sessenta e que se fazia sem jeito para se achegar a uma mulher, havia um homem inquieto, que não podia ver um rabo de saia dando trela para ele, que se abria todo.

Em sua andança rumo à labuta em meio ao calor de quase quarenta graus, Estoclênio resolveu se refrescar um pouco e se deparou com Crispiniana, linda e nua, à sua frente. Nesse dia não teve trabalho. O moço ficou lá, paralisado, feito estátua, admirando a beleza da mulher, até ela se aproximar e os dois se roçarem por lá mesmo por um bom tempo.

Mal o sol dava o ar da graça no dia seguinte e a jovem já havia ido embora para a cidade grande, a léguas e léguas de distância daquele lugar. Estô descobriu onde a mulher morava e não pensou duas vezes – foi atrás da sua mais nova paixão. Em linhas tortas e mal escritas, deixou uma carta para Juvanilda e disse que não mais voltaria para casa.

Feito agulha no palheiro, o rapaz conseguiu, com muito custo, chegar até o paradeiro da loira e conquistar o coração da moça.

Seis meses se passaram e Juvanilda não se conformava ter perdido o seu homem para outra mulher. A sobrinha da comadre de seu tio fazia umas mandingas para quem queria reconquistar o amado. Ao ler o letreiro na porta da casa da parenta distante, escrito em letras garrafais “trago seu ex de volta”, Juva não titubeou e tratou de pedir um trabalho certeiro.

A macumba era fácil de fazer e segundo a mandingueira era tiro e queda. Bastava a mulher colocar o nome do cara e da atual dentro da boca do sapo, olhar bem no olho do bicho e falar três vezes: “esse homem é meu e de mim ninguém tira, sai pra lá, muié, que esse aí já tem quem qué, sai de perto, coça, coça, vem, meu macho, aqui pra roça”. Trabaio feito.

Tudo era muito simples. A única coisa que Juvanilda tinha que ficar atenta é que se o ex voltasse, e estava confiante de que voltaria, sempre que aparecesse um sapo (ou uma rã) em sua casa, ela teria que colocar o nome dele e da falsa galega goela abaixo do bichano.

E não é que o cabra da peste voltou? Não deu uma semana e o rapaz estava lá, no portão, batendo palma para entrar. Juva deu um pulo da cama, se emperiquitou toda, como se fosse ao baile, em plena seis da matina, abriu um sorrisão e destrancou a porteira.

O companheiro voltou um anjo, pianinho, com uma mão na frente e outra atrás. Juvenilda nem quis saber o que aconteceu, apenas se fez feliz que seu macho estava de volta – e era isso que importava.

Com a rotina de volta àquela terra, cercada de xique-xique da caatinga daquele pedaço de fim de mundo, Juvanilda mantinha a tradição da mandinga e sempre que avistava uma figura esverdeada em formato de gia já preparava a tal escrita para colocar em sua boca e garantir a paz de espírito e o amor naquele recinto.

Certo dia, ela e o maridão saíram para festejar a venda de meia dúzia de cabritos. A mulher bebeu um pouco de cachaça a mais e estava alegrinha, alegrinha. Quando chegou em casa, manguaçada que só, não se apercebeu da ilustre visita de uma perereca na sala.

A bichinha já estava quase saindo de casa quando Estoclênio a avistou e se assustou. Estabanada e apressada para não botar tudo a perder, a mulher pegou um papel e caneta, escreveu rapidamente os nomes e colocou na boca da rã, que engoliu tudinho na mesma hora.

Dia seguinte, Juvanilda não conseguia sequer ficar perto do marido que lhe vinha uma coceira danada. A urticária aumentava só de ouvir a voz do rapaz. Tudo que poderia levar Juva a se lembrar do amado fazia bolhas saltarem, feito sapo, uma a uma pelo seu corpo.

Não tinha trabalho nenhum que fizesse a moça parar de se coçar perto de Estô, que não teve outra saída a não ser ir simbora pra bem longe da mulher.

Numa noite calorenta, daquelas em que era preciso deixar portas e janelas abertas para ver, em vão, se um pouco de vento entrava, adentrou em sua casa uma rãzinha que parecia familiar. Estava maior um pouco, mas era a mesma de tempos atrás. A bichinha abriu a boca, jogou um pedacinho de papel no chão, olhou bem no olho de Juva e foi-se embora. No tal papelzinho estava escrito, Juvanilda X Estoclênio.

Só a partir daí que mulher se deu conta do pequeno grande erro cometido naquela noite de manguaça. Mas já era tarde demais. Juva já estava casada, ainda que a contragosto, com um primo do compadre da tia de Estoclênio, com cinco filhos pra criar e mais um, que estava por chegar.

(Imagem: Freepik)

Queda cupida

Sofia e Antenor eram um casal apaixonado. Ele, violinista, spalla de uma famosa orquestra sinfônica e músico de cerimoniais e ela, professora de inglês de uma rede de franquia. Viviam um conto de amor.

Mas os gostos de ambos nem sempre batiam. Antenor não gostava muito de sair. Volta e meia tinha um ensaio ou um concerto para se apresentar em algum teatro, o que já tomava parte do seu tempo. A namorada ia junto, a contragosto, já que não aguentava mais ouvir Beethoven, Bach. Mozart, Verdi e outros dessa linha. O que ela gostava mesmo era de um bom pagode e um churrasco com os amigos, aliás, tinha o samba no pé.

Só que os pés da menina sequer pulavam para o quintal de casa desde que começou a namorar com Antenor. Às vezes ela parava para perguntar o motivo de estar com o rapaz se as diferenças eram enormes – talvez o sexo seria a motivação maior, sintonia e sinfonia perfeitas.

As saídas da professora se limitavam à casa do namorado e às apresentações do amado. Essa vidinha sem graça de ouvir música clássica e erudita já não mais a agradava, aliás, nos últimos encontros musicais a moça dava um jeitinho de levar às escondidas um fone de ouvido para escutar seus sambinhas preferidos enquanto a plateia se deleitava de prazer com toda aquela barulhada suavemente sincronizada.

Sofia passou a procurar algo realmente interessante para fazer. Seu desejo latente sempre foi ser passista de escola de samba, mas isso seria demais para o mocinho ciumento, que mal a deixava sair com as amigas para um arrasta-pé ao som de tamborim, pandeiro, reco-reco, cavaquinho, uma boa caipirinha e muitas risadas.

Mas ela precisava dar um sacode na vida, um chega pra lá no tédio, fazer alguma coisa, se sentir livre, leve e solta, como se estivesse em um desfile de escola campeã.

Resolveu, então, fazer algo para se exercitar. Comprou um par de patins e fez uma surpresa para o namorado, dando a ele um modelo igualzinho ao seu. Só o que a jovem jamais esperava era a reação do bonitinho.

_ Você não sabe que eu sou artista, o principal da orquestra e que não posso me machucar? _ esbravejou o “astro-mor” das cordas.

Com receio de se acidentar, Antenor jamais praticava esportes, tampouco os que poderia causar algum dano em seu braço, punho, mão ou dedos, suas maiores e mais valiosas bases de trabalho. O medo era tamanho que o músico fez uma apólice de seguro desses membros para garantir que nenhum mal o aconteceria em caso de algum incidente qualquer mas, na dúvida, preferia evitar qualquer risco, motivo pelo qual se excedeu ao receber o mimo.

Passada a decepção da mulher, que entendeu a preocupação do rapaz, só não a rispidez ante a surpresa do regalo, decidiu curtir sozinha o brinquedinho e pegou de volta o presente dado ao belezura.

Os fins de tarde passaram a ter um ar diferente na vida da moça, que ganhou gosto pela patinação e já arriscava algumas manobras diferentes. Ela estava tão alto-astral que até os desagradáveis concertos do namorado tornaram-se mais amenos aos seus ouvidos.

Só quem não parecia se agradar muito era Antenor, que se incomodava ao ver a empolgação da namorada em sua atividade esportiva e saber das novas amizades da moça. Passou a controlar a amada com um aplicativo que mostrava seu percurso e tempo de atividade e movimento. Sim, ela tinha que mostrar para ele seu desempenho esportivo.

Para tentar impedir suas saídas diárias, o musicista teve a ideia de esconder o capacete da querida, item necessário de proteção no quesito segurança a quem anda sobre rodinhas.

Ocorre que o entusiasmo de Sofia era tamanho que mesmo sabida de o quanto poderia se prejudicar sem o tal equipamento resolveu sair para treinar um pouco.

Tudo caminhava e caminharia perfeitamente bem, não fosse o asfalto rachado de material de quinta categoria da empreiteira que venceu a licitação do recapeamento do parque que a bela curtia seu brinquedo preferido. Maldito prefeito, que se fez de cego, surdo e mudo nessa empreitada de qualidade duvidosa. Enfim, parafraseando o sábio Nelson Rodrigues, Sofia beijou o asfalto. Sim, desequilibrou-se com os seus patins naquele mar de propina….

Sem sequer conseguir sair do lugar, e zonzinha da Silva, a moça se deu conta de que não poderia ter saído de casa sem o tal protetor, mas como diria Luís de Camões em “Os Lusíadas”, já era, fia, “agora Inês é morta”, caiu, levanta e vai atrás do prejuízo.

Com muita dificuldade e corpo dolorento, Sofia entrou em um pronto atendimento médico e somente depois de quase duas horas foi atendida por um rapaz ruivo, de sardinhas no rosto, olhar sério e fala ríspida.

_ Olá, mocinha! Já sei o que aconteceu. Que bonito, hein! Você acha que pode pegar um par de patins, sair por aí feito uma doida, de qualquer jeito, sem capacete e se esborrachar toda? Tá achando que a sua cabeça é coco? Não é, não. E olha quanta gente aqui pra eu atender. Da próxima vez, se for pra esquecer o juízo, nem sai de casa.

_Olha aqui, senhor enfermeiro, eu não vim até essa espelunca para ouvir sermão de ninguém. Tudo está doendo muito, não consigo mexer a mão, mas quer saber de uma coisa, vou embora daqui.

_ Quietinha que você já aprontou muito por hoje, não acha? Fica aqui, sentadinha, vou fazer um raio X mas já deu pra ver que também torceu o pulso. Acha que vai resolver isso onde, na padaria, no açougue? Para de reclamar que eu já te atendo.

Ela já não sabia se ficava ou esperava, mas a dor era tão grande que resolveu ficar por lá.

Trinta minutos depois, o mesmo profissional atendeu a moça, que teve que imobilizar o antebraço.

_ Por sorte não foi nada grave. Só mesmo o pulso. Quinze dias de molho, sem sequer olhar para o patins, fui claro? _ ordenou o ruivo.

Com os nervos mais amenos, os dois conversaram por alguns minutinhos e descobriram que eram amigos de infância. A empatia passou a reinar no recinto e os dois até trocaram contatos, segundo o moço das sardinhas, para saber sobre a evolução da recuperação.

Assim que foi liberada no pronto-atendimento, Sofia seguiu para a casa do namorado, que não conteve a cara de felicidade ao ver a amada impossibilitada de andar por aí livre, leve e soltinha sobre suas rodinhas.

O tédio da moça aumentava a cada dia. Lembrou-se do enfermeiro estressado e passou a conversar com ele vez em quando em mensagem de celular.

Os tão esperados quinze dias se passaram e Sofia foi retirar o gesso do braço. Eis que o não mais bravo rapaz foi quem a atendeu novamente. Papo vai, papo vem, não é que a recém-patinadora convenceu o cara a dar uma voltinha de patins? Emprestaria a ele o presente que seria do namorado, que continha todos kit de proteção, e disse que ensinaria os primeiros passos, ao passo que ele topou o desafio.

Aula vai, aula vem, os dois passaram a se conectar cada vez mais, até que, enfim, findou o namoro morno da jovem com a estrela das notas musicais.

A nova dupla de patinadores passou a curtir cada vez mais as aventuras do esporte e, após descer uma ladeira daquelas de dar um friozinho na barriga de qualquer veterano, o ruivo ajoelhou-se de frente para a bela, tirou do bolso uma caixinha contendo um anel de noivado e declarou seu amor, pedindo a namorada em casamento, que sem titubear aceitou na hora.

No dia do casório, tudo pronto, capela arranjada com flores do campo, as preferidas de Sofia, e um presente surpresa do noivo, uma entrada triunfal, ao som do samba predileto da noiva, tocado por um renomado musicista, contratado pela cerimonialista do evento.

Sem saber quem era aquela mulher toda branco, véu e grinalda, com ar de pessoa livre, leve e solta, seguindo em passos lentos em direção ao futuro esposo, estava Antenor, tocando, a contragosto, uma música bastante diferente das de seu costume e preferência.

Assim que a música parou, o violinista se deu conta de quem se tratava naquele altar. Visivelmente atordoado, pegou seu violino e saiu, afoito, rumo a qualquer outro lugar que não fosse aquele ambiente alegre. Ao descer a escadaria, tropeçou e caiu sobre um dos braços, o que lhe resultou em uma licença de seis meses de trabalho.

Lembra do seguro do rapaz? Pois bem, vencera três dias antes do incidente e o pobrezinho esqueceu de renovar. O capacete da ex? Queimou e jogou as cinzas no rio.

(Imagem: Freepik)